Quando consegui enxergar novamente, cocei os olhos pra ter certeza que estava vendo direito. É, sem ilusões… Espero.

Estava num campo de flores. Mas como nada é normal agora que estou morto, as flores eram gigantes, tinham janelas e portas. Algumas pareciam habitadas por almas como eu e outras eram visitadas por borboletas azuis.

— Você se acostuma. – ouvi a voz da Sarah, mas ela não estava mais visível.

— O que é esse lugar? – perguntei para o nada.

— O mundo dos mortos. Dependendo da minha aparência, eu mudo a dele também, pra ficar divertido. Da última vez, era um condomínio de luxo. E eu era a faxineira. Foi engraçado.

Tentei imaginar por que razão a Morte ia gostar de ser a faxineira de um condomínio de luxo, mas não consegui chegar a nada que fizesse sentido, então desisti dessa linha de pensamento antes de fritar meu cérebro. Resolvi explorar. Queria me ocupar e sabia que aquilo ia me manter ocupado por um bom tempo se o meu tamanho permanecesse aquele.

Andei pelo que pareceram horas e não me cansei. Talvez isso fosse algo relacionado com estar morto. Vi várias almas perambulando como eu. E as borboletas. Vigiando, como guardas em uma prisão. Aquele pensamento me revoltou. Não queria estar preso. Não queria estar morto.

— Não se preocupe. – Sarah falou novamente – As borboletas só vigiam pra me ajudar. Se houver algum problema… Tipo isso.

Eu não tinha percebido, mas estava sendo observado por todas as almas num raio de… Não consigo calcular. Mas era um raio bem grande. E por todas, eu quero dizer todas. As que estavam no meu campo de visão pareciam estranhamente vazias. Ah, e é claro, meu peito estava brilhando.

— Se eu fosse você, parava com isso. – as intervenções inúteis da Morte já estavam ficando chatas. E eu não sabia parar o que quer que eu aparentemente estava fazendo. Ela apareceu na minha frente.

— Vai fazer alguma coisa quanto a isso? – eu perguntei.

— Não. Vai ser divertido. – ela sorriu de novo. Acho que vou pedir pra ela parar com isso.

— Divertido como?

— Você vai descobrir. Mas eu te aconselho a parar antes de ficar divertido. Se não, vai doer.

Fiquei com medo. E o medo trouxe outras emoções, milhares de emoções. Tantas emoções quanto almas me olhando. E doeu. Muito.

Tente imaginar uma festa com mais de duas mil pessoas, todas elas falando ao mesmo tempo e você ouvindo também os pensamentos delas. Imaginou? Pois bem, o que eu senti foi pior. Porque eu senti amor, ódio, revolta, raiva, felicidade, tristeza, esperança, alegria, fome, histeria, saudade, loucura, angústia, ganancia, luxúria e muitas outras coisas, todas misturadas e intensificadas pelo meu medo. Eu estava paralisado, só sentindo.

— Pronto, agora chega. – Sarah já não sorria mais. Ela passou a mão sobre a luz no meu peito e essa apagou como se nunca tivesse existido – Você não deveria estar aqui.

Mais uma vez, a confirmação de que eu sou perseguido pelo azar. A Morte me dizendo que eu não devia estar no mundo dos mortos. Lindo, perfeito. Mas pelo menos tinha parado de doer.

— Corre. – impressionante como o tom de voz dela não muda mas mesmo assim ela consegue passar o estímulo certo. A voz dela não tinha nenhuma indicação de urgência, mas olhando como as borboletas azuis se reuniam ao redor dela e como aquelas almas me encaravam, urgência foi o que eu entendi e comecei a correr sem pensar em pra onde ir. Corri até minhas pernas cairem. Só que como eu estou morto, isso não foi possível. Corri mais. Corri por dias. Sim, dias. Eu vi anoitecer e amanhecer naquele mundo estranho pelo menos umas três vezes antes de parar de correr. E não, a paisagem não mudou nem um pouco. Só flores gigantes para onde quer que eu olhasse.

— Ver você correr já perdeu a graça. – Sarah, você realmente podia calar a boca. Ela não estava em nenhum lugar – Vem, temos que conversar.

E eu não estava mais num campo florido. Estava flutuando. No céu noturo ou no espaço. E a Morte estava deitada numa bolha. Com um sorriso. Calafrio.

— Devolva o que você roubou. – ela falou, olhando séria para mim.

— Mas eu… eu não roubei nada. – aquela acusação era ridícula, ela esteve me observando desde o momento em que eu morri, como podia dizer que eu roubei alguma coisa? Ela devia ter visto que o que ela estava falando era um absurdo.

— Tá, você não roubou. Mas o que eu faço com as incontáveis almas que ficaram sem sentimentos e sem memórias depois do seu show de luzes? Tive que trancá-las em suas flores. Não gosto de trancar as almas. Elas vivem trancadas, deviam poder ser livres na morte.

— Não foi culpa minha. – e eu estava falando a verdade. Ou assim eu achava.

— Não foi sua culpa, foi culpa da luz que saiu dentro de você. E se uma coisa sai de dentro de você, você é responsável.

— Mas eu nem sei o que era aquilo!

— Pois trate de descobrir. – Ela colocou a mão para dentro da bolha e, quando a tirou de lá, estava segurando uma pena que parecia brilhar. E parecia estar em chamas. Mesmo que parecesse só uma pena vermelha normal – Se você sair do mundo dos mortos sem a permissão da Vida, só vai me dar dor de cabeça. Eu e ela temos um trato. Sempre que eu precisar mandar alguém perambular fora do mundo dos mortos, eu posso pegar uma pena dela. É a permissão que as almas precisam. E meu remédio pra dor de cabeça. – eu já estava completamente perdido, mas continuei fingindo que estava prestando atenção – Enfim, vai descobrir como devolver as coisas que você, consciente ou não, roubou. – e eu fui engolido por um portal.